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Ádria dorme em meu jardim

  • reginaceliborges40
  • 2 de jun.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 17 de jun.


Stênio Pietro



Vou começar lhes contando sobre aquela infame noite de quinta-feira. Não havia nada atrativo aos meus olhos, seja onde quer que eu procurasse, a monotonia tomara conta daquele minúsculo cubículo em que eu me alojara. Horas, dias e semanas eram igualmente tediosos, arrastados e totalmente previsíveis.

Havia um resquício de esperança dentro de mim, que pra falar a verdade, não sei como eu e a tal "esperança", sobrevivíamos, mesmo nos confrontando diariamente. Eram dias de batalha interna, sem vencedores, mas com o mesmo derrotado de sempre e a mesma vontade de não querer duelar mais, porém estávamos sempre lá.

Sempre fui de esperar o pior, de pensar no pior e que está tudo prestes a desmoronar sobre mim, mas aí é que me deparo com tal fase em que nada acontece, nem para o mal e muito menos para o bem. Essa estagnação me assusta e eu me sinto afundando em pensamentos sombrios e me afogando nas lágrimas que nunca consegui derramar, seja por empatia aos meus semelhantes ou por mim mesmo.

Já flertei com o suicídio algumas vezes, e por vezes, eu imaginava meu corpo pendurado no teto da sala, agonizando enquanto sentia a vida se esvaindo e meu corpo balançando feito pêndulo de um relógio antigo. Quisera eu ter a coragem dos suicidas.

Nem ao menos chorar eu consigo, deveria ter me privado menos de alguns sentimentos que eu sempre os classifiquei como demonstração de fraqueza, sempre me ridicularizando por apenas ter agido como um homem benevolente, quando na verdade eu queria espalhar o sangue de muitos pelo chão. Não, eu não sou e nunca serei assim, lembrava.

Gosto de pensar nas possibilidades e caminhos diferentes que eu poderia ter tomado, mesmo que errôneos, eu sempre quis saber que outro rumo isso teria me levado. Gosto de sair de casa e regar as plantas, as pouquíssimas plantas que tento mantê-las vivas no meu pequenino jardim de fracassos, pois nada se cria, mas eu permaneço na insistência de que tudo um dia irá florescer.

Eis que naquela quinta-feira ela me surge. Mal posso me conter ao descrevê-la nos mínimos e mais fúteis detalhes que outra criatura jamais observaria, mas eu os vi. Seja pela total falta de algo mais importante a se fazer ou pelo desejo incontrolável e vibrante que minha alma estava ao ver magnífica perfeição em forma de mulher. Longos... Longos e brilhantes cabelos negros como a noite, sua pele pálida como a face mais clara da lua, sua boca uma armadilha, uma bela e linda armadilha em que eu faria questão absoluta de cair, suas mãos delicadas e pequenas, mas suas unhas eram como garras de aço negro, seus olhos eram vermelhos como um rubi flamejante, joias vindas do inferno, suas pernas, ah suas pernas... Perfeitamente torneadas como se viesse correndo do outro lado do mundo até aqui. E eu não resisti em me aproximar e foi aí que eu descobri sua arma mais poderosa: um sorriso que faria até as geleiras dos árticos derreterem em êxtase.

Seu nome era Ádria, da qual eu nunca mais esqueceria. Tomei-a em meus braços e flutuei na vasta imensidão azul. Era tudo como um sonho que eu não queria acordar, com ela eu poderia ser tudo. Quando estávamos juntos, o tempo passava numa velocidade alucinante e se arrastava quando eu estava só. Sim! O mundo era muito mais colorido e eu vi cores que nem sabia que existiam, o perfume das rosas exalava mais forte e eu me sentia mais vivo e capaz do que nunca me sentira antes, até que...

Alguém, seja por ciúme ou inveja, veio ao meu ouvido com palavras ferinas como um abutre que não ataca, mas espera até que a presa morra para se alimentar da carcaça. Pôs dúvidas e questionamentos em minha mente. Continuou ele:

 - Outros também caíram naquela armadilha e, nesse exato momento, sucumbem aos prazeres da carne.

Senti um vazio angustiante como se naquele momento estivessem arrancando todos as minhas vísceras e eu tivesse ficado oco.

Confesso que nunca fui de reivindicar algo que sei que não é meu, muito menos de entrar em disputas das quais eu sei que não vou conseguir vencer, mas em vez de chorar mais uma vez internamente, fui tomado por uma cólera de tal intensidade, que desconheci os meus limites, seja da insanidade ou das leis desse mundo que nos diferem dos animais.

A ira não é capaz de medir as consequências. Parti para o meu destino. Chovia torrencialmente como se o céu derramasse um pranto sem fim, prevendo o terror iminente. Lá cheguei, entrei pelos fundos da casa.

Guiado pelos gemidos e sussurros, flagrei a cena da traição. Não, senhoras e senhores, eu não hesitara um segundo sequer, nem ao menos pensei na possibilidade da desistência, do arrependimento ou qualquer outro sentimento cabível perante tal ato. Senti como se estivesse envolto em chamas, senti como se eu tivesse transcendido a barreira do espaço-tempo e força alguma poderia me alcançar.

Com arma em punho, eu desferi golpes de machado sobre seus corpos nus, e a cada golpe que eu dava, trovões e raios cortavam a tempestade. Era um quadro de horror e eu que fui o autor daquela obra macabra. Pintei o meu mundo de vermelho em segundos, me banhei em sangue e chafurdei nas entranhas dos adúlteros. Sorria assombrosamente e os perguntava insistentemente se estavam gostando de fazer aquilo comigo.

Já muito distante de qualquer razão, senti a possessão do meu passageiro escarlate – era a fúria que mantivera aprisionada nos confins mais obscuros do meu ser. Contemplei a cena com uma certa satisfação.

Ajoelhei-me ao lado do corpo dela, peguei sua mão e coloquei no meu rosto, fazendo as carícias que ela sempre me fazia para me acalmar, para me manter sob seu domínio. Foi quando vi a aliança em seu dedo, foi quando vi os porta-retratos com fotos deles, foi quando vi a aliança dele com o nome dela, Ádria. Foi quando percebi que ela era casada com o homem que eu agora era cadáver no chão. Eu era o outro, eu que o traíra. De tão cego de amor não procurei saber nada do seu passado a ponto de não querer nem ao menos que ela falasse sobre tal assunto.

Uma sufocante sensação de vazio, desespero, culpa e medo me deixaram atônito, pois eu sabia o que estava prestes a acontecer. Cortei-o em pedaços, ensaquei-os, limpei o quarto pútrido de sangue. Levei os sacos e fui jogando ao longo do rio que cortava a cidade. Ádria dorme em meu jardim.



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Stênio Pietro, filho de Marcel Bezerra e Maria Amélia de Sá, um jatobaense nascido em Paulo Afonso, BA, 1980, e que adora literatura.


 


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